Deu de ombros
Ele não tinha jeito de quem falava muito. E, quando vi, realmente não falava. Chegou em silêncio, sorrindo de um jeito meio assustado. Meio assustador. Não sei bem o que fazia lá. Pouco tinha a ver com o resto da turma na fila. Aliás, olhando melhor, ele nem sabia que tipo de fila era aquela. Não, parecia que ninguém tinha reparado nele. A moça na frente, negra bem negra, com uma bolsa azul na mão, apenas olhava para um vazio cheio de nada. Enquanto isso, ele mantinha um deslocado sorriso. Não demorou para que alguns chegassem atrás dele. “Para abrir firma?”, perguntou um rapaz calvo, mas ainda jovem, chegando atrás dele. Percebi que o jovem ficou mudo. Apenas olhou com desdém para o sujeito. Deu de ombros e, quando parecia que nem havia entendido a pergunta, fechou a cara dizendo “sim”.
Sim. Ele não estava de bem com a vida. Sua esposa lhe tratava de forma fria. Chegava em casa todo dia e pouco via de novo. Mobílias gastas, a cortina meio cor de creme, com cara de suja, sempre lhe irritava. Quase sempre a TV ligada na Globo. Aos domingos, o timbre da voz do apresentador obeso já lhe irritava. Mas não era domingo. Nem dia de semana era. Ele mal sabia que dia era, enquanto fitava a dobra da blusa azul clara da senhora negra na frente. A dobra indicava que o peso dela estava acima do normal. Enfeitiçou-se por aquela visão, e quando notou, já estava sem foco e, mesmo assim, não tirava os olhares da dobra. Apenas quando a fila andou ele conseguiu dispersar. Todos com pastas na mão, mas ele não. Ele era o único que não tinha pasta. Resolveu tomar uma atitude então. Encarou o segurança, que meio entediado, transparecia o cansaço disfarçado de autoridade meia boca. O que pretendia com aquilo? Quando o segurança enfim notou que estava sendo duramente observado, era tarde. O rapaz estava próximo demais. Deu um empurrão no segurança.
Nessa hora, um medo incomum chegou em sua mente. Enquanto o senhor de bigodes ralos e camisa marrom clara e calça marrom escura caía ao chão, toda sua vida passou em sua mente. E não era boa. E não era bela. Sofreu muito para chegar onde chegou. E mal sabia onde era. E mal sabia o que fora. O que sonhou e o que ganhou.
Quando os dois jovens chegaram junto ao solo, a senhora enfim encheu sua mente. Por um breve instante, surgiu em sua veia um relance de emoção. Livrou-se do olhar vazio, e mesmo achando que estava em perigo, gostou. No fundo de sua alma, sorriu. Sorriu enquanto o rapaz foi detido e levado para uma sala onde não era mais observado. Sorriu porque teria algo para contar de noite. Chegou a vangloriar-se, imaginando como seria contar isso às amigas. Sim, o dia já tinha valido a pena, pensou.
4 comentários:
cara, que texto agoniante! Já leu "A náusea" do Sartre? Me lembrou algumas passagens quando você escrevia os sentimentos e os pensamentos que acontecem num milésimo de segundo antes de algum ato fora do comum ocorrer. Tipo, a descrição precisa de todo o ambiente sabe? Enfim, escrevi tanto pra concluir que não sei explicar o que senti ao ler...ahahahhaha
Luís, muito bom seu texto. Vi o quanto você fez de uma mera situação um fato único e cheio de detalhes. Pois bem. Gostaria de lhe pedir uma grande ajuda: queria lhe entrevistar para a matéria de uma revista que estou fazendo. O texto irá tratar sobre como um seriado mexicano agrada a pessoas de várias idades e gerações. Desde já lhe agradeço muito. Te sigo no twitter. Você me acha como: laerte_martins. Valeu aí pela atenção.
Fala Laerte, blz? Me manda um email no luis.joly seguido de gmail.com. Aí combinamos de nos falar por telefone.
Abs
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