O Alienado Circo da Fórmula 1
A visão de um fã sobre as loucuras em um dia de Grande Prêmio
Até o começo da prova, tudo que ouvíamos era a batida tecno – aquele infernal som eletrônico que, para alguns, também é conhecido como música. Para passar o tempo, um locutor dava o tom da festa. Em meio a cervejas, outras bebidas e muita comida, brindes como rádios FM e porta-CDs faziam a festa da multidão. Qual a largura máxima de um carro de Fórmula 1? Em que ano Jarno Trulli estreou na categoria? Quais os modelos de pneu usados pela equipe Toyota? Responda ao quiz e leve seu prêmio.
O melhor quando se está nas arquibancadas de um Grande Prêmio de Fórmula 1 é a atmosfera. Claro, não me refiro ao calor franciscano do domingo, até porque estávamos confortavelmente na sombra, mas ao clima que é criado ali. Pessoas de vários países, gaitas de fole, tango, bandeiras, tatuagens e muitas mulheres – vê-se de tudo no literal circo que atravessou 16 países ao longo do ano e terminou na terra do samba.
Samba-lounge, aliás. Foi este o gênero de tecno escolhido pelo DJ, que nos brindou com horas com o estilo musical. Estilo que, inclusive, nos impediu de escutar a execução do Hino Nacional, por Margareth Menezes, em plena reta dos boxes.
Como se tratava de uma área VIP, não houve necessidade de muitas das ferramentas que eu costumava fazer uso em eventos como esses nos anos anteriores – salgadinhos, pilhas, binóculos, água, capas de chuva e outras bugigangas.
No momento pré-corrida, a tensão para que tudo se inicie por parte do grande público é notória. Enquanto o já citado locutor realiza ensaios para agradecimento ao presidente da patrocinadora do local, vendedores e outros funcionários convidados subiam os degraus com copos de cervejas estrategicamente disponibilizados nas mãos. Quanto mais, melhor. As bebidas vão fazendo efeito conforme as promotoras vão se tornando mais importantes do que a corrida em si. Várias delas eram solicitadas para sairem em fotos com os torcedores. Um luxo.
O desfile dos pilotos, que acontece sempre minutos antes da corrida, foi um show à parte. Os atletas, em um caminhão circulando pelo quente e elogiado asfalto de Interlagos, acenavam a esmo para a platéia que esperava pelos gladiadores. Apesar da clara instrução de não se apoiarem na grade frontal, foi para lá que a imensa maioria foi, tentando assim chegar alguns metros mais próximos das estrelas da festa. Munidos de câmeras e celulares, tentavam de alguma maneira driblar as linhas dos alambrados que os separavam da arena. Em vão, o locutor lutava para promover os pilotos da patrocinadora – como se todos ali não estivessem mesmo querendo ver os três que disputavam o título – além de Massa, claro.
O samba-lounge deu lugar a outros sons. Os acordes de verdade começaram quando os bólidos coloridos saíram às pistas para a formação do grid. Confesso que, nos primeiros anos que freqüentava a corrida, recusava o uso dos protetores auriculares, frente ao romantismo de se ouvir o roncar de máquinas tão cobiçadas de forma, digamos, até virgem. Porém, o tempo passou, minha audição também, e antes que ela não voltasse mais, fiz, humildemente, uso do acessório.
Se de um lado o clima é contagiante, o que mais nos deixa indignado são os comentários ignorantes (ainda que compreensíveis), de pessoas que notadamente estão ali como curiosos convidados e, mesmo assim, fazem-se de especialistas. Afinal, em terra de Ayrton Senna é muito fácil falar mal de Rubens Barrichello sem razão. Quando uma Williams passou reduzindo marchas, o colega ao lado sentenciou: "Esse aí já estourou o motor". De nacionalidades erradas, flertes até palpites mil, tudo se escuta em uma corrida de automóveis.
Quando a corrida teve início, lembrei do pecado mortal que havia cometido: não trouxe radinho. Não sobrou outra opção ao não ser recorrer ao sistema de som da casa. O locutor, prontamente, anunciava as oito primeiras posições, sem muito entusiasmo. Restava ao repórter-torcedor aqui fazer as contas de cabeça para saber quem levava o caneco.
Eis que Hamilton sai da pista. Eis que Hamilton pára. Não,ele não parou, ele diminuiu. Quebrou? Não, voltou. Mas está em último. Que diabos, o que aconteceu com ele? A falta de uma rádio que trouxesse as informações decentemente no alto-falante foi sentida. Assim como o meu velho rádio FM, que àquela altura continuava confortavelmente armazenado no fundo de uma gaveta em meu quarto, local por onde esteve pelos últimos 11 meses.
O comportamento do público chega ao ápice na largada. Na posição em que estávamos (subida dos boxes), não enxergávamos um palmo da reta de largada e do S do Senna. Recorremos ao telão, que nos ajudava. Todos de pé, como em um tribunal, sonhando com uma vitória de Felipe Massa. Quando ele passou na liderança na primeira volta, foi um gol, tamanha a comemoração. Quando passou na segunda volta, alguns ainda gritaram. Na terceira, os maiores gritos eram de "senta!", para os desavisados (como eu) que permaneciam em pé.
Conforme a corrida avança, vai tornando-se mais visível a gradativa falta de interesse que vai pegando os menos ligados ao esporte. Sem informações sobre como estava a prova, e apenas vendo os carros passarem, para muitos valeu mais a pena ficar no andar de baixo, junto com os comes e bebes, do que juntar-se aos demais que ainda assistiam. As mulheres ensaiavam bocejos, os homens procuravam mensagens no celular. Uma criança ao meu lado não resistiu, e tirou os sapatos. "Que horas é jogo do São Paulo mesmo?", indagou ao ar o senhor atrás de mim. Ora, afinal, o que fazíamos ali mesmo?
No momento em que Kimi ganhou a posição de Felipe nos boxes, a maioria (ao meu redor, pelo menos) já não sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas souberam o suficiente para se irritarem com o brasileiro. E lá vem comparação com Barrichello. Algo, de forma invertida, com o que houve com o próprio Rubinho, que sempre era nivelado com o antecessor Ayrton Senna.
Quando o locutor anunciou que estava na última volta, foi o sinal para a maioria decretar, por conta própria, o fim da corrida. Como as torcidas que saem do estádio no meio do jogo em dia de goleada do rival, lá iam todos descendo as escadas provisoriamente montadas para o evento, cobertas com tapetes vermelhos.
Ainda era possível ouvir os carros passando em velocidade mais lenta na volta de comemoração – Kimi Räikkonen era o campeão, mas muitos com certeza sequer sabiam disso. Para eles, o importante era voltar a ouvir o tecno samba lounge, que retornou em alto e bom som logo após o término da prova, e combinava muito bem com a cerveja gelada.
Para fãs como eu e muitos outros ali, restou lembrar que a ficha já começara a cair - música para nossos alienados ouvidos novamente, só em 16 de março de 2008, de Melbourne, pela TV.